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Expurgo – Deforming Europe Tour 

Trutnov, Rep. Tcheca, Verão europeu, 2018.

No final dos anos 90, a pacata cidade de Trutnov, ao norte da República Tcheca, hoje com cerca de 30.000 habitantes, foi surpreendida por Miroslav Urbanec, um punk de coração, cheio de piercings na cara, que no maior estilo underground, do-it-yourself, resolve comemorar seu aniversário de 25 anos convidando 40 bandas de grindcore para um evento no Bojišti. O campo de batalha de Trutnov durante a guerra austroprussiana de 1866. Agora, imagine ele explicando par a prefeitura que o festival vai se chamar Obscene Extreme.

O festival é um convite a todos os tipos de páreas, marginalizados e grindcore aficcionados em uma encosta da cidade, no que só consigo imaginar ter sido um aterro sanitário aposentado, devido ao odor de chorume, característico do lugar. No início, era servido cerveja. Quente. Isso apenas. Nessa fossa aberta que não possuía nem banheiro. Nas próximas edições, já era possível comprar um hamburger também. De soja. Inserido na cena politizada hardocre / punk / grindcore da Europa, desde então, tudo que é servido no fest é ou vegetariano, ou vegano. 

O evento era um oásis às avessas, onde tudo quanto é criatura bizarra e deslocada encontrava um par. Com o passar do tempo, nutriu-se um senso de comunidade nos estranhos e esquisitos, que assim como o nosso anfitrião, vivem a rapa do assoalho do heavy metal. Uma crescente onda de gente impregnando-se de lama tóxica – tenho certeza – em mosh pits e stage dives, como porcos se banqueteando em lavagem. Do início da tarde, noite a fora, até o raiar do dia. Um fim de semana inteiro, ano após ano. 

Pode parecer um pesadelo para um fã de música comum. E é mesmo. É extremo até para fãs de hard rock e death metal. No entanto, esses grind freaks estão felizes. Como pintos no lixo, literalmente. Se força de expressão. Acredite ou não.

Sem chamar atenção para si, o mágico de Oz podia ser visto caminhando, humildemente, em meio ao público. De sorriso aberto. Conferindo se está tudo em ordem.

O tempo passa e a popularidade do fest aumenta. Um novo anexo é implementado para alocar barracas e trailers de atendentes mais distantes. O boca a boca extrapola as fronteiras do OEF para além da República Tcheca e leste europeu, logo alcançando Alemanha, Bélgica, Itália, França e Espanha. E a seguir, a Escandinávia. Região importantíssima na história da música extrema. Várias bandas consolidadas em seus subgêneros virão a participar como headliners nas edições seguintes, colocando o fest no radar do restante do mundo. E então, fãs, bandas, e bandas-fãs do Japão e sudoeste asiático, Austrália, Inglaterra, América do Norte e América do Sul, incluindo o Brasil, viajam até às margens do cócito para testemunhar essa festividade.

O palco sempre foi posicionado no vale, de frente para uma arquibancada em forma de semi arena e à esquerda do morro das lamentações. Um descampado, sem sombras, com um empilhado de corpos punks, bêbados, seminus, porém cobertos de terra.

Uma grade de arame abraça a grande área em volta do público. Uma rua improvisada com lojas de artigos de toda sorte, de camisas e vinis de bandas obscuras, à toalhas de praia e growlers de café. Black. A cerca ainda continua, delimitando a área de camping, a praça de alimentação sem produtos de origem animal e o backstage, com o palco no epicentro. 

Um grande parque de diversão devoto ao grind. Cada um que chega recebe uma pulseira credencial, válida para todo o fim de semana, conferida diariamente pelo staff. Não tem revista na entrada, pois não existem seguranças contratados no evento. Tudo é liberado. Cada um cuida do próximo e não existem brigas.

Nem tudo é perfeito. A frustração acontece quando a cerveja acaba. Escuta-se, então, sonoros “goddammit”s vindos do QG. Um olhar atento reconhece a silhueta de Curby espumando e soltando fumaça pelas orelhas.

A qualquer momento do dia, brota da lama tóxica algum figura de peruca laranja cantarolando algo ininteligível com um mankini verde dividindo as bandas da bunda. Ou outro alguém com uma boia de pato em volta da cintura vestindo fraldas geriátricas e segurando uma mamadeira de cerveja gigante. Esses fãs ridiculamente espetaculares fazem parte das atrações esperadas pelo restante do público e moldam o caráter do Obscene. 

Depois que o lineup é concluído, já de madrugada, quem entretem o público são os elementos noturnos. Na hora macabra, os espetáculos são sadomasoquistas e escatológicos, com vestimentas de látex regadas a golden showers. Fetiches mais direcionados aos atendentes do sub-subgênero goregrind e pornogrind. Esses são exemplares das pontas do espectro das pessoas que torcem pelo OEF. 

Durante a tarde, nas arquibancadas, não é difícil reconhecer membros das bandas que estarão no palco nos próximos dias. Assim como todos ali, eles são acima de tudo, fãs de música, vieram até Trutnov se divertir, rever amigos, estourar tímpanos alhíos, levar consigo boas histórias para casa e repetir tudo no ano seguinte.

A grande maioria do público é composta por fãs de música extrema, rápida, pesada e barulhenta, que comparece aos shows e festivais de metal em suas cidades e países e que sentem-se realmente em casa, em família, quando se reconhecem nos rostos e estampas das camisetas dos seus novos amigos exóticos. Vale dizer que parte dos grinders raiz encontrados por lá não são vistos em outros grandes festivais como Wacken, Rock Am Ring, Download, Hellfest ou Ressurection. Não sabem dançar a balada do metal mais tradicional, de fácil acesso, mainstream. Eles destoam demais fora de seu habitat. Não que se importem. Não que nos importemos. Pois a partir de agora, também fazemos parte desse legado.

In grind, we crust.

B.